Capoeirar camará

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Foto: Thais Fernandes (Docinho -Capoeira de Valor)

Nunca andamos só, no campo da prática circular, qualquer que seja, estamos em afeto. Capoeirar é lançar-se sobre a vida existente na gira, é o ato de lutar e vadiar com as palavras transcendendo a funcionalidade do jogo na roda. Eu diria que capoeirar é gingar na dimensão do pensamento e das subjetivações. Os deslocamentos que podem surgir daí são impensáveis e surpreendentes.

Esse encontro narrativo, é antes de tudo uma documentação um registro do processo de afetação a que estamos sujeitos quando nos lançamos na prática da gira. Essa narrativa é o resultado de diversos encontros ritualisticos do cotidiano. Tem a ver com os ritos de casa com a família, na rua com a vizinhança e com catadores de recicláveis, no trabalho formal ou não. Nos campos de saberes como o terreiro da capoeira ou na universidade. Dentro do ônibus ou no boteco soltando as palavras. Essa diversidade de ritos tem a ver, portanto, com as trocas e partilhas das experiências, qualquer que seja.

Essa crônica narrativa é fruto da caminhada que há tempo se constrói como tentativa inacabada de criar um modo de vida que caiba na verdade do meu corpo, e de um modo de entendimento do que é ser capoeira.

A relevância desse registro alcança materialidade no momento em que esses encontros são ressignificados. É o momento em que as atitudes da capoeiragem se deslocam dos controles impostos pelos padrões cartesianos e liberais, que só produzem mal estar e ansiedades, para além de outros malefícios. Àquela aposta na adolescência de quando diveritiamos na roda da capoeira ressurge fortalecido, a partir desses encontros.

Esse processo de ressignificação e de (re) existência é revelado no segundo em que a verdade na minha existência é confrontado por uma mãe de santo, liderança política e vivente da decolonialidade em sua plenitude. Doné Eleonora (in memorian) e sua capoeiragem me ajuda e (re) posicionar-me cotidianamente, até hoje, frente as sombras das nossas contradições.

Não poderia deixar de revelar que muito antes, minhas avós empreenderam atitudes semelhantes. Elas desembarcaram na estação ferroviária de Campinas e produziram, ambas, luminosidade para suas gerações.

Esse patrimônio cultural e memorial me conduz a encontros na gira da capoeira que me encaminha para a orientação acadêmica da professora Drª Norma Trindade no Programa de pós graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. A exemplo do encontro com Doné, a sala de aula me revela o potencial até então controlado, existente no saber da capoeiragem.

Esses encontros sugerem e indicam outros encontros como por exemplo, os saberes decoloniais do grupo Modernidade/Colonialidade, os macumbisticos de Simas e Rufino, os viscerais de Conceição Evaristo e Lélia Gonzales, o reencontro com o pensamento de Muniz Sodré, entre tantos outros encontros libertários que permitiram chegar a esse ponto, o de capoeirar, a exemplo da capoeiragem dos citados acima.

Como se nota, capoeirar só é possível a partir de um dialogo, de um encontro com o outro. A ativação dos afetos se desenrola em círculo, na partilha e na troca de experiências, momento em que o espelho se revela a nossa frente, e demonstra verdadeiramente de que somos feitos. Somos feitos de experiência. Capoeirar em toda a sua dimensão cria experiencias. Saravá a capoeiragem, saravá aos capoeiras.

Fotos: Contramestre Alvim Jr

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